domingo, 5 de setembro de 2021

como se esquivar da bala lenta

excelente tema este
para os teóricos do sorriso eterno
num qualquer seminário multicultural
- um coito de alquimistas psiquiatristas astrólogos
que prescreveriam desviar o pensamento
ou sorrir para o projéctil

mas como se desviar da bala sonsa
de revólver já habituado de ferrugem
- que risca fareja calcula
e que diz - de sorriso eterno postiço -
vou-te matar

como resvalar em face do estupor da bala
quando nem os gritos fazem tremer
o eco que a traz

porque é o eco a sua substância
e o eco - como se sabe -
[a tragédia torna-se farsa]
faz ricochete
nos corpos vivos e inanimados

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

é urgente

expurgar o engano
de que a terra é quieta

existem constantes e recorrências rítmicas
- mas a cada passagem da minha bússola
as sementes da violência
- insidiosas - sedentas de minerais -
afundam mais um palmo golpeado

tomemos o pulso à emergência
- o que vai - o que se afunda
devagar
há-de voltar com a força do terramoto

há-de voltar primeiro
mesmo que depois de todas as coisas

e há-de abrir novas fissuras
para novas sementes

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

encontro espinhos em gerúndio
cravados numa folha avulsa

dentro de um dia - de um livro -
onde a humidade já se faz gérmen

«complexo de fraude»
- diz a folha

a desafiar a minha fé
de erratas e de injúrias

[há que desconfiar do poema curto
feito de espinhos e de julgamento

porque - sabe quem o sabe -
há uma faina de correcções

no salvamento de uma só expressão
- pesada de chumbos - e uma bóia ao meio

enquanto outra forma de vida não houver
esperemos - sem o engodo da fé]

[Poema publicado em Mostrengo – Antologia Poética, Caniço, Jóias de Cultura, 2019.]

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

nada do que te disser
abalará o matadouro ou a fornalha

o silêncio seria uma hipótese administrativa
mas rasgo-o porque quero viver

o meu epitáfio estará sempre escrito
nas linhas que bordam a tua ferida

sempre dito nos bafos que levam
e fazem pousar as asas das cinzas

é bom que o saibamos
antes e depois dos holocaustos

se desprezarmos as palavras
tudo é transmissível – tudo se assemelha

emergem némesis siamesas
e oposições forjam-se do mesmo veio

por isso sufoco o silêncio
dos rituais servos – da burocracia funcionária

– cicatriz à tua ilharga
é chaga minha

– o que te faz flama e queda
é o que me fará recordar

[Versão de poema publicado na colectânea 70 Poemas para Adorno, Funchal, Nova Dephi, 2015.]

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

isto da amizade entre poetas
tem – portanto – muito que se lhe diga

há aqueles que prometem amizade eterna
– noite fora – álibi dentro

outros colocam os amigos nos himalaias
– maior a distância – maior o descaso

todos procuram o melhor remate
para um poema – para um desfecho fadado

com meia dúzia de caralhadas ou trocadilhos
pelo meio – como dita a nova lei

a arte cavalga o dorso da vida
– é isto ou o contrário disto – não interessa

um remate – portanto – 
ou um aperto de mãos – na caveira