domingo, 16 de março de 2025

elegia a mim
que vou ali e já venho

é só o intervalo
de pensar em algo

na vã postura
por exemplo

de pensar sempre
na mesma coisa

e porque ali vou
- e venho já -

concebi uma elegia
à minha afectada pessoa

enquanto suspiro
mais um engano
o domingo traz pelo cabresto
a indolência miudinha da chuva

a espuma ressequida
do café – aqui na chávena –

é exemplo da deriva da mente
pelos trilhos em malha da chuva

o domingo agarra pelo cabelo
o nevoeiro sfumato esboçado

– isto lá fora
– e eu cá dentro
a vida dança uma valsa comigo
sou eu quem guia o passo primeiro
retoma a vida a falsa valsa comigo
e trocamos os pés pelo corpo inteiro
 
respira-me no peito e murmura
– que ansiedades possuo eu?
exaspero pela pergunta dura
– mas afinal sou indeciso eu?

em quebrando célere a valsa
diz-me rápida a vida falsa
não tens quem raivas te meça?
digo singelo – é apenas dor de cabeça

domingo, 15 de janeiro de 2023

e nunca a palavra vazio
me soube tão acre

tão cega e tão gutural
- perde-se-me a voz

vazio mais vazio
é impossível

- digo para mim
com plena convicção

- digo apesar de mim
ainda na convicção

de botar passo
esquecendo passos

a estrada é tão igual
adiante e atrás

[igual - vazia - a estrada
à frente - às costas]
o homem que aspira à liberdade
encoraja e desencoraja
a morte em todos os dias

sofre os abalos mudo e amarelecido

- a liberdade não dá de barato as confidências
e ocupa toda a alma entumecida


o homem que quer ser livre

não tem cara - tem esgares
não tem morada - tem a rua
não tem membros - tem selo e lacre
não tem calor nem frio - tem medo
não tem amarras - tem grilhetas de ferrugem
não tem amor e não tem filhos -

o tempo acaba sempre ali mesmo
venha e não venha
a morte de todos os dias
estou limpo e sucinto afinal
de toda a maledicência

engulo-a como ao tornado
que as mãos arrepanha

e aos sons grotescos
e à surdez da posteridade

sirvo-me depois nódoa
à mesa da aristocracia

para poder ela
degustar o suor

que do meu corpo
flui ácido

sirvo de argumento estanque
idiota útil e enxuto

simples no dever
e frouxo ao devir

no ínterim peço
a brancura

sobre o suor
e a sujidade ganha

desejo uma imagem
após outra imagem

ao canto esquerdo
levanto-me pois formidável

e corcunda enfiado
ao canto direito sou

de resto quero saber
o autor de tal cena

sucinto e desiludido afinal
tomo a cinza e a cal

e vou com sede
à minha vida

domingo, 5 de setembro de 2021

como se esquivar da bala lenta

excelente tema este
para os teóricos do sorriso eterno
num qualquer seminário multicultural
- um coito de alquimistas psiquiatristas astrólogos
que prescreveriam desviar o pensamento
ou sorrir para o projéctil

mas como se desviar da bala sonsa
de revólver já habituado de ferrugem
- que risca fareja calcula
e que diz - de sorriso eterno postiço -
vou-te matar

como resvalar em face do estupor da bala
quando nem os gritos fazem tremer
o eco que a traz

porque é o eco a sua substância
e o eco - como se sabe -
[a tragédia torna-se farsa]
faz ricochete
nos corpos vivos e inanimados

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

é urgente

expurgar o engano
de que a terra é quieta

existem constantes e recorrências rítmicas
- mas a cada passagem da minha bússola
as sementes da violência
- insidiosas - sedentas de minerais -
afundam mais um palmo golpeado

tomemos o pulso à emergência
- o que vai - o que se afunda
devagar
há-de voltar com a força do terramoto

há-de voltar primeiro
mesmo que depois de todas as coisas

e há-de abrir novas fissuras
para novas sementes

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

encontro espinhos em gerúndio
cravados numa folha avulsa

dentro de um dia - de um livro -
onde a humidade já se faz gérmen

«complexo de fraude»
- diz a folha

a desafiar a minha fé
de erratas e de injúrias

[há que desconfiar do poema curto
feito de espinhos e de julgamento

porque - sabe quem o sabe -
há uma faina de correcções

no salvamento de uma só expressão
- pesada de chumbos - e uma bóia ao meio

enquanto outra forma de vida não houver
esperemos - sem o engodo da fé]

[Poema publicado em Mostrengo – Antologia Poética, Caniço, Jóias de Cultura, 2019.]

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

nada do que te disser
abalará o matadouro ou a fornalha

o silêncio seria uma hipótese administrativa
mas rasgo-o porque quero viver

o meu epitáfio estará sempre escrito
nas linhas que bordam a tua ferida

sempre dito nos bafos que levam
e fazem pousar as asas das cinzas

é bom que o saibamos
antes e depois dos holocaustos

se desprezarmos as palavras
tudo é transmissível – tudo se assemelha

emergem némesis siamesas
e oposições forjam-se do mesmo veio

por isso sufoco o silêncio
dos rituais servos – da burocracia funcionária

– cicatriz à tua ilharga
é chaga minha

– o que te faz flama e queda
é o que me fará recordar

[Versão de poema publicado na colectânea 70 Poemas para Adorno, Funchal, Nova Dephi, 2015.]

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

isto da amizade entre poetas
tem – portanto – muito que se lhe diga

há aqueles que prometem amizade eterna
– noite fora – álibi dentro

outros colocam os amigos nos himalaias
– maior a distância – maior o descaso

todos procuram o melhor remate
para um poema – para um desfecho fadado

com meia dúzia de caralhadas ou trocadilhos
pelo meio – como dita a nova lei

a arte cavalga o dorso da vida
– é isto ou o contrário disto – não interessa

um remate – portanto – 
ou um aperto de mãos – na caveira

segunda-feira, 4 de julho de 2016

tropeçam fantasmas
no regresso do discernimento

meu regresso?
meu discernimento?

não sei

não ouvi o galo
anunciar as matinas
– como quem ergue o homem

não vi a lagartixa
cuspir nas pedras
– como quem guia o homem

não ordenei a um ermo ou a uma floresta
para se fazerem e ao seu contrário
– como quem alimenta o homem

mais além não suam deuses
nas molduras das paisagens
– como quem acredita no homem

não senti os cães
a ladrarem nas vespertinas
– como quando se iça no fim dum baraço o homem

não sei das cagarras
que destoam da noite
– como quem ri do homem

não sei

regressam fantasmas
nas exéquias do discernimento

e assim
suspendo as glândulas do conhecimento
com suspiros do abdómen

sacudo o sangue
com gargalhadas redundantes

e tropeço sempre
na minha sabedoria

tenho na retina
um brilho de lâmina
– afiada por dentro
– romba por fora

[Poema publicado na colectânea Cadernos de Santiago I, Lisboa, Âncora Editora, 2016.]

quarta-feira, 2 de março de 2016

[Fotografia de Miguel Leitão Jardim, a partir da qual foi elaborado o poema que se segue. As excelentes fotografias do Miguel podem ser vistas aqui: A Gaivota Existencialista.]

tomai uma casa
pode ser um cubo ou um labirinto com anexo
uma tenda ou uma pirâmide flutuante

uma figura
– de gramática – geométrica
torcionária
como só acontece aos lugares onde se sobe
onde se desce
– como nas idades feitas pontos cardeais
deitados à roleta dos cata-ventos

uma casa – a casa
[de sépia – de cores que se precipitam
com escadas ou alçapões riscados ou por riscar]
há-de ser vergada pelas mãos firmes do tempo
– de uma mulher – de uma criança

nela tudo se cria – tudo se desconjunta
parte-se o pão – divide-se o pão
baralham-se as mãos – tornam-se a dar

pode ter portas ou seteiras
pontos de fuga ou de vácuo
esquinas – vértices – facas – agulhas

testas rachadas quando não se repara adiante
raias de deflagração
dedos furados – casas armadas – botões cosidos

a casa – esta casa
olhai
o seu padrão de filigrana
embutido nas rosáceas dos corações

um homem entra
– ou sai do mundo –
[isto – nesta casa – nunca é claro
seja durante a apanha de despojos
ou na vigília do rancor]
e espera
as mãos bordadas atrás das costas
o peito coberto à luz

e reconhece
– venha o que for de vir

quarta-feira, 8 de julho de 2015

não sei já o que pensar
– para saber necessita a mente de esquecer

e os espasmos eléctricos
percorrem – de pés nus –
caminhos de calhaus miúdos
ou asfaltos onde irrompem as feiteiras

deixo o saber e aposto a vida
em decalcar os contornos das coisas
e em registar – em conceber – os negativos da realidade enevoada

– ou seja – o tudo de nada

mas
a inutilidade – como a verdade ou a feiteira – não se verga
a inutilidade – como a verdade ou a pedra – não se quebra

deixo a vida e aposto a arte
– em tudo o que analiso ou vejo
contemplo apenas a lenta contradição de mim – lento

num saco bojudo – inchado
entra o mundo ruidoso – enrugado
e dele saem as minhas ideias

– ou seja – o nada de tudo

[2004; 2015]

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

ouve - escuta
- não t'esqueças do que vais dizer

porque a noite há-de cair
- e há homens para quem a noite não cessa de cair

há quem atinja ao nascer
o seu nível de incompetência
- concretizando um vitalício
princípio de peter

espera - peço-te
- empresta meia onça de atenção
a quem não tem crédito

há homens que escoam das entranhas das mães
para uma escada subterrânea
- que descem a escada
porque assim é a luz que os leva

luz certa - água vazia - o que importa?
assim se deixam levar porque não têm outro alimento

por isso quero dizer-te apenas uma coisa
- não tenho nada p'ra te dizer